O festival Enterro Prematuro regressou para a sua segunda edição, após ter colocado Tavira no mapa dos concertos de música extrema no ano passado. Este ano, com cinco bandas — duas delas oriundas de Espanha — o evento afirmou-se como continuidade de uma trajetória claramente em crescimento.
Os primeiros a subir ao Palco da Rock Baixamar foram os espanhóis Feral, com um Groove Metal intenso e cheio de atitude. Inicialmente mais contidos, foram ganhando confiança música após música, culminando numa atuação que surpreendeu todos os presentes. A energia foi aumentando gradualmente, até àquele ponto em que já ninguém conseguia reconhecê-los de tão transformada que estava a sua presença em palco. Vieram com garra, prontos para conquistar os ouvidos algarvios e deixaram marca. O ponto alto foi o tema “Nunca Brilla”, impulsionado por um riff poderoso e cativante, com um baixo que preenchia cada recanto sonoro de forma perfeita. O groove era contagiante, misturando vibes dançáveis com uma vontade irreprimível de headbanging. A intensidade emocional era notória, visível nas expressões de cada membro, como se estivessem a tocar o último concerto das suas vidas. Uma composição que se destacou entre todas, culminando num breakdown que parecia abalar a gravidade de todos os astros em órbita de Tavira. A sonoridade remetia inevitavelmente para Lamb of God, com um baixo que brilhava sem receios e uma bateria em perfeita simbiose com os restantes instrumentos. Os riffs alternavam entre malhas tipicamente thrash e momentos mais melódicos e sentimentais. A voz rasgada abria fendas sonoras nos blocos de granito groovado, com o público rendido em circle pits logo nos primeiros minutos. Uma estreia explosiva para dar início a um festival quente.
Seguiram-se os Yaatana, com o seu Crossover Thrash inflamável — possivelmente a banda mais impactante do festival. Trouxeram uma onda de destruição sónica que ecoou por todo o Algarve. Sem piedade, conquistaram a plateia com uma ligação visceral entre o quarteto do Porto e o público metaleiro. O contágio musical foi tal que gerou crowd surfing frenético, stage diving insano e mosh pits imparáveis. Com letras carregadas de crítica social, destacaram-se temas como “WAR”, “NT Control” e “Zombie Digital”, este último um verdadeiro convite à reflexão social. Malhas como “Hatred” revelaram influências de Municipal Waste, misturando riffs de Thrash, tanto moderno como old school, com a energia bruta do Hardcore e breakdowns que testavam a resistência cervical. O groove esteve sempre presente, e a vontade de dançar — no sentido moshístico do termo — era inevitável. Impressionou também a confiança em palco, com uma atitude de quem parece fazer isto há décadas, apesar da juventude do grupo. O carisma do vocalista fez lembrar Chuck Billy, dos Testament — quem tiver dúvidas, que os veja ao vivo. Os pontos altos da sua atuação, para além da energia demiúrgica que não se apagou para o resto da noite, foram a cover dos Sepultura “Inner Self” que nos teletransportou para as terras longínquas da nostalgia e as duas últimas faixas da noite - “Arma Nuclear” e “Thrash Head” - que resumem o que são os Yaatana: energia pura de Thrash Metal. Já não havia gelo para quebrar — só fogo para lançar, e os Yaatana incendiaram cada centímetro da Rock Baixamar.
De forma inesperada, os Armnatt substituíram os Arachula. A banda de Tavira trouxe consigo um Black Metal punitivo e teatral, com forte presença cénica e mensagens vocais mergulhadas em crítica social de tons niilistas e misantrópicos. A sonoridade oscilava entre o Black Metal mais tradicional e secções groovadas que mantinham o público cativo. O vocalista, com uma corrente em punho, chicoteava o palco, reforçando a agressividade da atuação. A aura de escuridão foi intensa, com ecos de Satyricon e um ocasional sopro de Rock’n’Roll. Uma energia desconcertante que se traduzia em tímidas tentativas de circle pits. Destacaram-se “Darkness Embrace”, com tremolos gelados e blast beats impiedosos — reminiscente da fase mais antiga da banda — e “Temple Stones”, que apresentou uma sonoridade mais refinada e atmosférica, demonstrando evolução no som do coletivo algarvio.
A quarta banda da noite foram os Apocryphal Verses. A banda de Sevilha apresentou uma sonoridade que se passeava entre o Metalcore mais moderno e o Deathcore mais clássico, sempre com os pés bem alicerçados no Hardcore e com um contrapeso no Nu Metal. Se ainda existissem sobreviventes na sala, pois bem foram totalmente aniquilados pela jarda sonora deste coletivo espanhol. A banda misturava, subtilmente, o Deathcore com o Metalcore, de um modo bastante engenhoso. Continha aquela vibe mais industrial e sintética do Metalcore mais moderno, com réstias de Nu Metal, muito bem balanceado com os breakdows do Deathcore. O Hardcore mantinha-se muito proeminente em toda a atitude e energia em palco. O ritmo foi tão frenético e o groove tão real que parecia que todos tinham sido infetados por um vírus de uma entidade coletiva, entregando-se em simultâneo a um 'full body banging', pois não era só a cabeça que sentia aquele power. A essência estava nos breakdowns que nos faziam desejar vértebras biónicas. Os riffs caóticos e mudanças rítmicas sugeriam alguma inspiração na primeira onda de Metalcore ou em algo mais técnico como o Mathcore, recheando ainda mais a mistura. “Morse” foi o destaque — uma cacofonia sublime e assinatura sonora da banda, com breakdowns capazes de humilhar muitos dos pares do género. A cover de “Eyeless”, dos Slipknot, revelou-se uma homenagem sentida a uma das suas maiores influências. O concerto terminou com uma Wall of Death, selando o pacto entre banda e plateia. Os pescoços vão lembrar-se desta atuação durante semanas.
Para fechar a noite, os Neuropsy. E que fecho. Verdadeiramente “a cereja no topo do bolo”. Entraram sem pedir licença e deixaram tudo em cinzas. As suas composições são abrasivas, supersónicas e tecnicamente alucinantes — não destinadas a ouvidos comuns.
A sua sonoridade foi altamente complexa, densa e multicamada. Velocidade, perícia e perfeição são adjetivos que não fazem justiça ao seu som. Sentiu-se uma brisa vinda do Death Metal Técnico de bandas como Cryptopsy (mais clássico) ou Obscura (mais moderno). As linhas de baixo eram de arrepiar a espinha a qualquer um; uns riffs brutais, que ao longe pareciam formar cones de mach em redor das palhetas; tudo fustigado por uma bateria que parecia ter feito um contrato com o anjo caído; a voz tenebrosa, violenta, e cavernosa que em cada verso parecia espetar facas, adensando ainda mais a agressividade gerada pelo som dos restantes membros. O resultado era algo sublime, e que, certamente, terá cativado os que ainda não eram fãs. É difícil destacar temas, pois todos foram executados com uma habilidade desumana. Ainda assim “Unsettled Seed of Existence” e “Clockwork To Dementia” mostraram um misto entre o Death Metal Técnico e o Deathcore, quase como Job for a Cowboy. Em “Vilified” houve que uma explosão da parte do público, ocorrendo uma troca justa de um mega mosh por uma mega malha. “Transcending Limitations” que teve um videoclipe lançado há pouco tempo, aprisionou os presentes numa hipnose total. O interlúdio do baixo foi a fórmula secreta para ressuscitar mortos; O breakdown seguido do riff em tremolo deixou todos exaustos, porém, concomitantemente, felizes. Para “Mutated Humans” a banda pediu mosh pit, e os presentes aquiesceram. A último da noite “Embrace the Reckoning” foi curta, mas intensa (ênfase no intensa). Foi destruição massiva, é como se cada um se tivesse transmutado numa ogiva nuclear, através dos reatores nucleares que são este quinteto atómico. No fim, ao som de “Not Like Us” de Kendrick Lamar, ficou claro: ninguém é como estes mestres do Death Metal Técnico. Sorrisos rasgados, corações cheios — de música, de memórias, de pura alegria.
A segunda edição do Enterro Prematuro provou que o festival veio para ficar e já se estabeleceu como parte do circuito nacional. A evolução de uma edição para outra foi clara e impressionante. Por agora, guardam-se as memórias, enquanto cresce a expectativa para 2026.
Um grande obrigado à Carolina Valente e a todos os que contribuíram para tornar este evento possível.
Agradecimentos: Enterro Prematuro