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Entrevista aos Mão Morta


Diz-se que por vezes “é preciso sair da ilha para ver a ilha”. Que temos que nos libertar das amarras que os limites e fronteiras nos impõe, para que os movimentos da criatividade sejam fluídos. Sejam livres. É dessa liberdade que vive a “...curiosidade, a vontade de aprender e explorar coisas novas…” dos Mão Morta.
Sob o pretexto do seu novo trabalho, Tricot, em colaboração com o Pedro Sousa, tentámos perceber quais os ingredientes da sua obra diversa, quais os meandros da sua nova colaboração e ainda como se chega a um retrato bruto e pastoso da atualidade.

M.I. - Os Mão Morta aproximam-se de uma data redonda na sua longevidade. Ainda não tinha nascido quando se formaram e só muitos anos mais tarde é que viria a ouvir falar da banda. Com o passar dos anos lançaram diversos álbuns, com variados conceitos, capazes de unir diversas gerações sob um gênero: Rock Avant-Garde. Numa breve retrospetiva, sentem que a vossa carreira e obra se tornou um verdadeiro “Rock rendez-vous”?

Achamos que não, até porque o rock é uma tipologia musical muito vasta e com muitos subgéneros e crossovers e, dentro dessa enorme variedade, há muitas manifestações de rock que nada nos dizem ou, até, que abominamos. Nós gostamos de pegar em muitas coisas que nos agradam, independentemente da sua origem ou tipologia musical, podem ser rock mas também jazz ou contemporânea ou eletrónica, e explorá-las musicalmente. A nossa matriz principal é rock, mas gostamos sobretudo é de explorar e aprender, focados maioritariamente no som.


M.I. - Em várias entrevistas referem que o facto de não viverem da música permite uma total liberdade, inclusivamente, o Adolfo já citou Carlos Paredes dizendo que “gosto demasiado da música para viver dela”. É correto pensar que esse é um dos ingredientes que tornam a obra tão diversa e abrangente? Há outros aspetos, que se lembrem, que contribuam para conseguirem tocar várias áreas artísticas e produzir resultados tão diferentes?

Sim, essa frase “gosto demasiado da música para viver à custa dela”, como quem diz que gosta demasiado da música para a prostituir ou para ser seu chulo, vinda ainda por cima da boca de Carlos Paredes, que nunca deixou o seu emprego hospitalar apesar da excelência e do reconhecimento público do seu trabalho musical, sempre foi para nós uma frase lapidar, de postura e ética. E essa postura permite-nos, de facto, uma liberdade criativa ímpar, nunca ameaçada pela mais ténue angústia quanto à boa ou má receção do que fazemos, porque não dependemos dela. Apenas interessa o nosso agrado e a nossa vontade de experimentar e aprender. Dito isto, não é esta liberdade criativa que torna a nossa obra tão diversa, apenas o permite – o que torna a nossa obra tão diversa é a nossa curiosidade, a vontade de aprender e explorar coisas novas, de perceber como se fazem coisas que não fizemos ainda e que nos apetece fazer. E isto independentemente dos géneros ou das tipologias ou mesmo das áreas ou linguagens artísticas.


M.I. - O projeto de André Tentúgal e Henrique Amaro nasce também com esse intuito de dar total liberdade aos artistas e aproximá-los, o que leva à colaboração dos Mão Morta com Pedro Sousa. Mas como surge a ideia de aliar as duas sonoridades?

O projeto Esfera tinha como pressuposto a colaboração entre artistas e foi com esse pressuposto que fomos convidados para o integrar. Desde logo surgiu a ideia de incluir novos timbres no nosso som, mais especificamente o do saxofone, que já tínhamos introduzido no passado, quer no disco “Corações Felpudos”, com o Rodrigo Amado, quer no “Primavera de Destroços”, com o Miguel Pedro, mas que nunca tínhamos explorado verdadeiramente. E com esta ideia surgiu o nome do Pedro Alves Sousa como provavelmente a pessoa certa para essa função, já que o seu percurso musical ligado ao free jazz e à música exploratória em geral lhe conferiam o perfil desejado. E foi assim que o convidamos e que ele aceitou de imediato.


M.I. - Desta colaboração de 3 dias fechados num estúdio, resultam 3 originais: Com as Próprias Tripas, A Dança das Raparigas e Dias de Abandono. Como foi o processo de criação destes originais? Podemos dizer que é um processo visceral, semelhante a um “tricot com as próprias tripas”?

O processo foi muito simples: os autores dos temas (o Miguel Pedro 2 e o António Rafael 1) criaram as bases eletrónicas, que ninguém conheceu até entrar em estúdio e sobre as quais, depois, todos improvisaram, sob a orientação genérica dos autores, uma orientação tipo “aqui entra uma guitarra” ou “o sax fica em contínuo até ao fim” ou “o som aqui deve ser cheio” ou “distorcido” ou “a voz fica bem pausada”, coisas assim. O Adolfo Luxúria Canibal tinha uns esboços de letras, que foi burilando em estúdio, sobretudo quanto à sua extensão, consoante os temas iam ganhando forma. E ao fim de três dias tínhamos os três temas prontos.


M.I. - Como aconteceu passar desse encontro e dessas três criações para o álbum que hoje é o Tricot?

Ficámos tão satisfeitos com a colaboração com o Pedro Alves Sousa e com o máxi-single que resultou dessa colaboração que decidimos prolongar a mesma para novos temas e para um espetáculo ao vivo. O princípio foi exatamente o mesmo: o Miguel Pedro e o António Rafael criaram as bases eletrónicas, sobre as quais todos improvisavam sob a sua orientação. A diferença é que essa orientação já não era em estúdio, sujeita a repetição e regravação se não ficasse do nosso agrado, mas em sala de ensaio, de modo a que quando subíssemos a palco toda a gente soubesse o que tinha a fazer, onde e como, quase como se fossem temas compostos. E de certo modo eram temas compostos, mas com grande espaço para a improvisação individual e coletiva, uma espécie de improvisação orientada. Também as letras foram tomando forma definitiva, uma forma também ela com espaço para o improviso, na sala de ensaios, a partir dos esboços que o Adolfo Luxúria Canibal levara. Depois tratamos de ver quem estaria interessado em contratar esse concerto e ficámos com a Culturgest e o GNRation – todos os outros contactos efetuados resultaram em negas. Avançamos assim com três concertos e decidimos gravá-los, utilizando a sala como estúdio de gravação. Como cada gravação era em take único, decidimos gravar os três concertos e também os ensaios gerais, para ficarmos com vários takes. Quando fomos ouvir, a dificuldade foi escolher, pois todos os registos estavam bons. Acabamos por ficar com o último, que já quando tocamos ao vivo nos tinha deixado a impressão que tinha sido o concerto que saíra mais perfeito, mais concentrado, o que o registo confirmava. E fizemos o álbum. 


M.I. - O saxofone de Pedro Sousa parece apelar à loucura em Dias de Abandono, ao passo que em A Dança das Raparigas, parece ser o único rasgo de lucidez. Todo o ambiente sonoro, toda a trama melódica, leva-nos a explorações emocionais fortes, tudo com a ajuda da arquitetura poética das letras. Com todos estes argumentos, parece difícil acreditar que “vivemos numa época que adora matar as coisas bonitas”. Será Tricot o refúgio dessa época ou a exorcização da mesma?

Quando o som do disco, primeiro do máxi-single, depois dos ensaios, começou a ganhar forma, o Adolfo Luxúria Canibal achou que era uma sonoridade que espelhava bem o mundo presente, uma espécie de desorientação difusa em que tudo se mistura, onde os pensamentos desestruturados se baralham e os medos se fundem com o ódio, esse ódio desgarrado e destrutivo que paralisa o futuro e embota a empatia, e trabalhou as letras para acentuar ainda mais essa impressão. “Tricot” não é nem um refúgio nem um exorcismo mas mais um retrato, um retrato bruto e sem filtros, pastoso, da atualidade.


M.I. - Avançamos para dois headbangers, ou fugindo aos anglicismos, duas “grandes malhas” que são Céu-da-Boca e Desafinado. Aqui os amantes de rock mais pesado podem soltar o cabelo e abanar a cabeça num movimento familiar. As sessões que deram origem a estas e outras faixas, surgiram em sessões semelhantes às primeiras ou já havia uma ideia do que queriam fazer de antemão?

Como referido anteriormente, o princípio seguido foi o mesmo, embora a sua concretização tenha variado em função do contexto, estúdio ou sala de ensaio. Mas o princípio criativo foi rigorosamente o mesmo, a composição de bases eletrónicas sobre as quais se fizeram improvisações orientadas.


M.I. - Já contam com muitos concertos ao vivo e com muitas histórias associadas, mas penso que cada um seja uma experiência diferente. Como foi a experiência de gravar este álbum ao vivo com o Pedro Sousa?

Foi uma experiência muito prazerosa. Sentíamos uma grande tensão, a tensão do improviso e do desbravar de terrenos virgens, por nós nunca antes explorados, e essa tensão rapidamente se transformou numa adrenalina viciante, de tal modo que quando acabávamos um concerto, ou quando terminámos a série de três, nos era difícil imaginar voltar a tocar temas de repertório, como se tocar os nossos clássicos fosse um ato vazio, sem a adrenalina do risco em que nos viciáramos. Foi preciso deixar assentar a ressaca para voltarmos a reencontrar a vertigem do nosso velho rock & roll.


M.I. - A arte da capa ficou mais uma vez a cabo de José Carlos Costa, que também teve a seu cargo capas icônicas como as de No Fim Era o Frio, Mutantes S.21, O.D. Rainha do Rock e Crawl, entre outras. Costuma ser também um processo colaborativo?

Não. Ele tem total liberdade criativa para encontrar a melhor figuração gráfica do disco a editar. Apenas lhe transmitimos as ideias gerais, deixámo-lo ouvir se houver algo para ouvir, passámos-lhe as letras se já houver letras, coisas assim, mas depois a criação artística é dele. Para nós não faz sentido interferirmos no trabalho artístico de outrem, a menos que nos peçam essa interferência. No caso do “Tricot”, ele viu o concerto da Culturgest e foi com base no que ouviu, viu e sentiu nesse concerto que realizou o desenho para a capa do disco.


M.I. - Brevemente estarão no X Aniversário do RCA, em Lisboa. Que podem os fãs esperar deste concerto?

Será um concerto adaptado às características da sala e da ocasião. Significa que estaremos o mais despojados possível e que tocaremos temas que se coadunem e que não necessitem de nenhum tipo de eletrónica. Significa também que será um concerto intimista e face-to-face, de adrenalina e rock & roll.


M.I. - Apesar de ainda faltarem uns largos meses, ou como diz a expressão “ainda a procissão vai no adro”, no próximo ano estarão no Vagos Metal Fest 2024. Como surgiu o convite e o que vos levou a aceitar?

O convite surgiu como habitualmente, por intermédio da nossa agência, A Chave do Som. Apesar de não sermos uma banda de metal, nem de perto nem de longe, o certo é que há muitos fãs de metal que são fãs de Mão Morta, de modo que, apesar de inusitado, não nos pareceu descabido fazer um concerto num festival que é dos mais míticos festivais de metal portugueses. 


M.I. - Quero deixar o meu agradecimento aos Mão Morta pela oportunidade, pelo tempo e por mais um grande álbum, Tricot.

Obrigado nós.

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Entrevista por Carlos Mateus